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Dispenso esta rosa
Dia 8 de março seria um dia como qualquer
outro, não fosse pela rosa e os parabéns. Toda mulher sabe como é. Ao
chegar ao trabalho e dar bom dia aos colegas, algum deles vai soltar:
“parabéns”.
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Por alguns segundos, a gente tenta entender por que raios estamos
recebendo parabéns se não é nosso aniversário (exceção, claro, à minoria
que, de fato, faz aniversário neste dia). Depois de ficar com cara de
bestas, num estalo a gente se lembra da data, dá um sorriso amarelo e
responde “obrigada”, pensando: “mas por que eu deveria receber parabéns
por ser mulher?”.
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Mais tarde, chega um funcionário distribuindo rosas. Novamente,
sorriso amarelo e obrigada. É assim todos os anos. Quando não é no
trabalho, é em alguma loja. Quando não é numa loja, é no supermercado.
Todos os anos, todo 8 de março: é sempre a maldita rosa.
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Dizem que a rosa simboliza a “feminilidade”, a delicadeza. É a mesma
metáfora que usam para coibir nossa sexualidade – da supervalorização da
virgindidade é que saiu o verbo “deflorar” (como se o homem, ao romper o
hímen de uma mulher, arrancasse a flor do solo, tomando-a para si e
condenando-a – afinal, depois de arrancada da terra, a flor está fadada à
morte). É da metáfora da flor, portanto, que vem a idéia de que
mulheres sexualmente ativas são “putas”, inferiores, menos respeitáveis.
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A delicadeza da flor também é sua fraqueza. Qualquer movimento mais
brusco lhe arranca as pétalas. Dizem o mesmo de nós: que somos o “sexo
frágil” e que, por isso, devemos ser protegidas. Mas protegidas do quê?
De quem? A julgar pelo número de estupros,
precisamos de proteção contra os homens. Ah, mas os homens que estupram
são psicopatas, dizem. São loucos. Não é com estes homens que nós
namoramos e casamos, não é a eles que confiamos a tarefa de nos
proteger. Mas, bem, segundo pesquisa Ibope/Instituto Patricia Galvão, 51% dos brasileiros dizem conhecer alguma mulher que é agredida por seu parceiro. No resto do mundo, em 40 a 70 por cento dos assassinatos de mulheres, o autor é o próprio marido ou companheiro.Este tipo de crime também aparece com frequência
na mídia. No entanto, são tratados como crimes “passionais” – o que dá a
errônea impressão de que homens e mulheres os cometem com a mesma
frequência, já que a paixão é algo que acomete ambos os sexos. Tratam os
homens autores destes crimes como “românticos” exagerados, príncipes encantados que foram longe demais. No entanto, são as mulheres as neuróticas nos filmes e novelas. São elas que “amam demais”, não os homens.
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Mas a rosa também tem espinhos, o que a torna ainda mais simbólica
dos mitos que o patriarcado atribuiu às mulheres. Somos ardilosas,
traiçoeiras, manipuladoras, castradoras. Nós é que fomos nos meter com a
serpente e tiramos o pobre Adão do paraíso (como se Eva lhe tivesse
enfiado a maçã goela abaixo, como se ele não a tivesse comido de livre e
espontânea vontade). Várias culturas têm a lenda da vagina dentata.
Em Hollywood, as mulheres usam a “sedução” para prejudicar os homens e
conseguir o que querem. Nos intervalos do canal Sony, os machos são de
“respeito” e as mulheres têm “mentes perigosas”. A mensagem subliminar
é: “cuidado, meninos, as mulheres são o capeta disfarçado”. E, foi com
medo do capeta que a sociedade, ao longo dos séculos, prendeu as
mulheres dentro de casa. Como se isso não fosse suficiente, limitaram
seus movimentos com espartilhos, sapatos minúsculos (na China), saltos
altos. Impediram-na que estudasse, que trabalhasse, que tivesse vida
própria. Ela era uma propriedade do pai, depois do marido. Tinha sempre
de estar sob a tutela de alguém, senão sua “mente perigosa” causaria
coisas terríveis.
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Mas dizem que a rosa serve para mostrar que, hoje, nos valorizam.
Hoje, sim. Vivemos num mundo “pós-feminista” afinal. Todas essas
discriminações acabaram! As mulheres votam e trabalham! Não há mais nada
para conquistar! Será mesmo? Nos últimos anos, as diferenças salariais entre homens e mulheres (que seguem as mesmas profissões) têm crescido no Brasil, em vez de diminuir. Nos centros urbanos, onde a estrutura ocupacional é mais complexa, a disparidade tende a ser pior.
Considerando que recebo menos para desempenhar o mesmo serviço, não
parece irônico que o meu colega de trabalho me dê os parabéns por ser
mulher?
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Dizem que a rosa é um sinal de reconhecimento das nossas capacidades.
Mas, no ranking de igualdade política do Fórum Econômico Mundial de
2008, o Brasil está em 10oº lugar entre 130 países.
As mulheres têm 11% dos cargos ministeriais e 9% dos assentos no
Congresso – onde, das 513 cadeiras, apenas 46 são ocupadas por elas. Do
total de prefeitos eleitos no ano passado, apenas 9,08% são mulheres. E nós somos 52% da população.
A rosa também simboliza beleza. Ah, o sexo belo. Mas é só passar em
frente a uma banca de revistas para descobrir que é exatamente o
contrário. Você nunca está bonita o suficiente, bobinha. Não pode ser
feliz enquanto não emagrecer. Não pode envelhecer. Não pode ter celulite
(embora até bebês tenham furinhos na bunda). Você só terá valor quando
for igual a uma modelo de 18 anos (as modelos têm 17 ou 18 anos até
quando a propaganda é de creme rejuvenescedor…). Mas mesmo ela não é
perfeita: tem de ser photoshopada. Sua pele é alterada a ponto de
parecer de plástico: ela não tem espinhas nem estrias nem olheiras nem
cicatrizes nem hematomas, nenhuma dessas coisas que a gente tem quando
vive. Ela sorri, mas não tem linhas ao lado da boca. Faz cara de brava,
mas sua testa não se franze. É magérrima (às vezes, anoréxica), mas não
tem nenhum osso saltando. É a beleza impossível, mas você deve
persegui-la mesmo assim, se quiser ser “feminina”. Porque, sim,
feminilidade é isso: é “se cuidar”. Você não pode relaxar. Não pode se
abandonar (em inglês, a expressão usada é exatamente esta: “let yourself
go”). Usar uma porrada de cosméticos e fazer plásticas é a maneira (a
única maneira, segundo os publicitários) de mostrar a si mesma e aos
outros que você se ama. “Você se ama? Então corrija-se”. Por mais contraditória que pareça, é esta a mensagem.
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Campanha pela real beleza. Será? |
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Todo dia 8 de março, nos dão uma rosa como sinal de respeito. No
entanto, a misoginia está em toda parte. Os anúncios e ensaios de moda glamurizam aviolência contra a mulher.
Nas propagandas de cerveja e programas humorísticos, as mulheres são
bundas ambulantes, meros objetos sexuais. A pornografia mainstream
(feita pela Hollywood pornô, uma indústira multibilionária) tem cada vez mais cenas
de violência, estupro e simulação de atos sexuais feitos contra a
vontade da mulher. Nos videogames, ganha pontos quem atropelar
prostitutas.
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Todo dia 8 de março, volto para casa e vejo um monte de mulheres com
rosas vermelhas na mão, no metrô. É um sinal de cavalheirismo, dizem.
Mas, no mesmo metrô, muitas mulheres são encoxadas todos os dias. Tanto
que o Rio criou um vagão exclusivo para as mulheres, para que elas fujam
de quem as assedia. Pois é, eles não punem os responsáveis. Acham
difícil. Preferem isolar as vítimas. Enquanto não combatermos a idéia de
que as mulheres que andam sozinhas por aí são “convidativas”,
propriedade pública, isso nunca vai deixar de existir. Enquanto acharem que cantar uma mulher na rua é elogio
, isso nunca vai deixar de existir. Atualmente, a propaganda da NET
mostra um pinguim (?) dizendo “ê lá em casa” para uma enfermeira. Em
outro comercial, o russo garoto-propaganda puxa três mulheres para perto
de si, para que os telespectadores entendam que o “combo” da NET
engloba três serviços. Aparentemente, temos de rir disso. Aparentemente,
isso ajuda a vender TV por assinatura. Muito provavelmente, os
publicitários criadores desta peça não sabem o que é andar pela rua sem
ser interrompida por um completo desconhecido ameaçando “chupá-la
todinha”.
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Então, dá licença, mas eu dispenso esta rosa. Não preciso dela. Não a
aceito. Não me sinto elogiada com ela. Não quero rosas. Eu quero
igualdade de salários, mais representação política, mais respeito, menos
violência e menos amarras. Eu quero, de fato, ser igual na sociedade.
Eu quero, de fato, caminhar em direção a um mundo em que o feminismo não
seja mais necessário.
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… Enquanto isso não acontecer, meu querido, enfia esta rosa no dignissímo senhor seu cu.
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