15.2.09

A voz

Sempre me acontece de não lembrar o que me foi dito por alguém. Não sei se recalco as partes mais importantes ou se eu realmente tenho algum déficit de atenção.

Acho que por isso não consigo responder à altura na hora da conversa. E depois que consigo digerir o que foi dito eu fico pensando 'eu devia ter respondido assim...'. De nada adianta.

O fato é que as palavras das pessoas vêm aos poucos na minha mente, dias, meses depois. E isso se manifesta de forma proporcional à importância do que eu ouvi. Quanto mais relevante, mais tempo eu demoro pra lembrar. O que é ótimo quando o conselho vem na hora certa, mas é péssimo quando retardatário.


Outro dia fiquei brigando com uma voz no meu ouvido. Uma espécie de amigo imaginário do mundo adulto, que algumas pessoas incrédulas chamam de consciência. Então essa voz veio quando eu estava pensando sobre o significado das imagens na minha vida e eu percebi que fotografo muito mais com os olhos que com a câmera. Até achei que, por um instante, eu odiava a fotografia, que o que eu gostava era de ver, não de fotografar. O que faz bastante sentido.

E eu fiquei discutindo horas com a voz, criando respostas que ela não deu para perguntas que eu imaginei. Ficamos muito tempo dentro da minha cabeça discutindo a beleza aquele dia. Eu contava que só o que é simples, cru, real, ou - por que não? - normal é realmente belo. E que eu gosto de registrar imagens do que eu vejo, e não criar outras realidades. Porque a fotografia nada mais é do que um fragmento do mundo, do tempo e do espaço, um pequeno quadro do todo que está em volta da câmera e do fotógrafo no momento em que se aperta o disparador.
É simples como um tiro. E tem um alvo. Todo o resto do mundo fica a salvo nesse momento, mas o alvo morre.

É essa a beleza da coisa. O momento. A verdade.
É como um acorde de mi menor no meio de um solo intrincado.

E a voz disse que não. Que a beleza está em um outro lugar, que não é no mundo. Que a beleza está por trás das coisas e das pessoas, mas não nelas. Que devemos buscar a verdadeira beleza, que nossos olhos não conseguem ver, que nossos ouvidos não conseguem escutar. Ela disse que nós nunca vimos nada bonito nesse mundo e que a arte é o portal que a gente vislumbra quando chegamos perto de descobrir onde está o belo.

E assim nós seguimos debatendo, conversando por meio de coisas que não eram exatamente palavras. Eu defendendo que é no mundo que a gente vive e que é aqui que estão todas as coisas e que todas elas são simples, e que nós fazemos parte das coisas, e que nós somos lindos e simples e reais e crus e era isso que eu gostava de ver. E ela afirmando que o mundo é medíocre, mentiroso, ilusionista, que a verdade está em outro lugar e que é nosso dever descobrir onde está e trazer a beleza pra cá e tornar o mundo um lugar menos feio.

Para mim, a beleza está no óbvio. Para a voz, a beleza está no mistério.

Mas essa conversa telepática que tive esse dia só bateu no meu ouvido ontem, quando eu lembrei de uma outra coisa que a voz me disse:

Que eu jamais serei fotógrafa se eu não fotografar. Que se a minha arma para matar meus alvos é a câmera, eu tenho que usá-la da forma mais mortal possível. Que ver precede o registro, mas ver é uma atividade egoísta. Que ninguém conseguirá nunca ver o que eu vejo da forma que eu vejo e que se eu quero compartilhar a beleza, mesmo que simples e óbvia, eu devo fotografar mais.

Nenhum comentário: